Análise: redação nota máxima na Fuvest 2023 citou Ailton Krenak
Na redação da Fuvest, o vestibular da USP (Universidade de São Paulo), o candidato é avaliado de 0 a 50 pontos. Aqui no GUIA DO ESTUDANTE, já mostramos quais são as características gerais da redação, o que não pode faltar no texto, além de dicas para desenvolver um título atraente. Mas nada melhor do que aprender na prática, não é mesmo?
Na Fuvest 2023, somente 14 candidatos conseguiram alcançar a nota máxima na redação. O tema da dissertação-argumentativa foi “Refugiados ambientais e vulnerabilidade social”. Além de reportagens e dados sobre o assunto, a banca disponibilizou textos de apoio dos escritores Graciliano Ramos e Ailton Krenak, além da fotografia Êxodos, de Sebastião Salgado.
Entre os candidatos que “gabaritaram” a redação está a jovem Gabriella Ferreira Marucci da Silva, de 17 anos. A estudante paulista teve uma performance exemplar na Fuvest. Além da redação 50, seu excelente desempenho nas questões lhe garantiu o primeiro lugar no curso de Medicina da USP Ribeirão Preto (FMRP).
Em seu texto, Gabriella cita o conceito de Necropolítica e Capitaloceno – dois termos que ganharam destaque nas discussões sociais, políticas e ambientais dos últimos anos. Além disso, também usou como repertório o autor, filósofo e ativista indígena Ailton Krenak. Confira abaixo a redação na íntegra da estudante e, em seguida, os comentários das coordenadores de redação do Poliedro Curso, Fabiula Neubern e Vanessa Botasso, sobre o texto e as escolhas da estudante.
Título: “Capitaloceno e o refugiado ambiental: degeneração neoliberal e “Necropolítica”
Introdução
O sistema político-econômico neoliberal, difundido no século XXI, substancializa o axioma de máxima reprodução da lucratividade mediante a massificação do consumo neoliberal calcado na superexploração dos recursos naturais e na petrificação da sobreposição do homem ao meio natural para a consolidação do Capitaloceno – signo para a era geológica hodierna na qual a intensificação da presença de poluentes atmosféricos, a fragmentação de ecossistemas e as mudanças climáticas ameaçam não somente a preservação da biodiversidade animal e vegetal, como também a própria sobrevivência antrópica no planeta. Dessa maneira, desdobramentos migratórios forçados em razão da fragilização ambiental, aspecto fulcral da reverberação moderna do Capitaloceno, elegem a alienação do indivíduo na instrumentalização do capital e a desestruturação da ordem democrática.
O texto se inicia com o conceito de “capitaloceno”, o qual serve, simultaneamente, para antecipar o ponto de vista da autora e demonstrar o argumento de autoridade no qual sustentará sua defesa. Em seguida, no parágrafo de introdução, a candidata apresenta esse mesmo conceito de forma mais clara, relacionando-o à doutrina neoliberal (não sem alguns desvios no trabalho com as informações a ela relacionadas) e indicando a degradação ambiental como um de seus principais emblemas. Esse parágrafo é finalizado com a apresentação dos principais argumentos que serão defendidos no texto, os quais aparecem resumidos em sua tese.
Desenvolvimento 1
“A priori”, o hodierno é permeado pelo viés capitalizante engendrado ao fundamentalismo neoliberal da sociedade utilitarista. Acerca disso, consoante o ativista indígena Ailton Krenak, em ‘’A vida não é útil’’, a reverberação do capitalismo como normatizador do tecido social manifesta a imperatividade do modus vivendus do consumismo material, de modo que o homem, anteriormente inserido nas coletividades agrárias tradicionais, pautadas na visão da natureza como integrante da subjetividade mística e cultural e na utilização dos recursos naturais para a subsistência e para a preservação das gerações futuras, torna-se ensimesmado na lógica mercadológica da perspectiva utilitarista da natureza, na qual a fauna e a flora são meros recursos exploráveis para o progresso materialista da sociedade capitalizada. Nessa perspectiva, o refugiado ambiental, ao se deslocar compulsoriamente do seu meio natural- fragilizado – para o tecido social alienado no apogeu do Neoliberalismo, instrumentaliza-se como homo economicus marcado pelo imperativo do poderio financeiro como símbolo de ascensão social e pela exploração da mão de obra produtiva para obtenção de remuneração rentária irrisória. Assim, reitera-se a coercitividade da visão utilitarista da natureza – intrínseca ao Capitaloceno – em detrimento da interação harmônica homem-meio.
Na primeira parte do desenvolvimento da argumentação, é apresentada numa estrutura padrão de parágrafos dissertativos. Para sustentar seu primeiro eixo argumentativo, que aparece resumido no tópico frasal (ou no primeiro período deste parágrafo), a autora recorre a Ailton Krenak, uma referência que não apenas contribui com a crítica ao “viés capitalizante”, como mencionado pela vestibulanda, mas também se relaciona intimamente com os principais aspectos da proposta de redação. Ao empregar tal referência, a autora do texto consegue detalhar a relação entre o modelo econômico atual e a degradação ambiental, reiterando o primeiro eixo argumentativo apresentado na tese. Além disso, o final deste parágrafo serve para destacar as consequências dessa relação e expandi-la para a crítica às relações de poder e dominação social, operando como um bom recurso coesivo que conecta essas ideias às do parágrafo seguinte.
Desenvolvimento 2
Considera-se, por conseguinte, a vulnerabilidade social do refugiado ambiental – deslocado forçadamente para se inserir na égide do capital da sociedade – é salientada pelo desmonte da cidadania desse estrato social. Sob esse viés, segundo o teórico Achille Mbembe, em “Necropolítica”, nas coletividades hodiernas, a exclusão social sedimenta-se diretamente, com a legitimidade do emprego da violência pelo grupo social hegemônico para a eliminação de uma minoria da população, e indiretamente, com a não fruição das prerrogativas assistencialistas e dos direitos sociais institucionalizados. Nesse sentido, o refugiado ambiental, na migração compulsória, estrutura-se como minoria subalternizada na nova configuração social e é alijado do acesso à cidadania para a manutenção de seu locus social de subalternidade, de maneira que a não fruição de políticas assistencialistas de distribuição de renda, de acesso à educação e à saúde, nas sociedades neoliberais nas quais a consolidação da cidadania plena é determinada pelo elevado poderio financeiro do indivíduo, assegura o cerceamento dos direitos humanitários desse grupo. Desse modo, a normatização do refugiado ambiental como minoria na lógica de exclusão social reitera o desmonte da isonomia social e da cidadania na ordem democrática para a prevalência do status quo de vulnerabilidade social.
Assim como no primeiro parágrafo de desenvolvimento, este segundo mantém a estrutura padrão da dissertação e, ainda, o mesmo recurso argumentativo, que consiste em buscar o convencimento por meio de um argumento de autoridade. Ao detalhar o conceito de “necropolítica”, de Achille Mbembe, a autora demonstra claro domínio da progressão argumentativa em sua redação, pois este conceito serve para que se estabeleça uma relação lógica de causa e consequência entre vulnerabilidade social, dominação social e cerceamento dos direitos humanitários. Cabe destacar que o bom encadeamento lógico no texto é valorizado pelo uso adequado de recursos coesivos, os quais valorizam as passagens entre partes do texto (é o caso de “por conseguinte” ao se iniciar este parágrafo). Desta vez, a autora da redação encerra com relações autorais que demonstram boa compreensão sobre o tema, como é o caso dos efeitos do descaso humanitário sobre a ordem democrática.
Conclusão
Em suma, o refugiado ambiental emerge no contexto hodierno de degeneração ambiental determinante do Capitaloceno, calcado na égide do capital no Neoliberalismo. Portanto, sua vulnerabilidade social substancializa-se na alienação na lógica de exploração do homo economicus e no desmonte do Estado Democrático de Direito, pautado na universalidade da cidadania, pela consolidação da “Necropolítica”.
Para encerrar seu texto, a autora conclui com uma síntese das principais ideias desenvolvidas em sua argumentação, bem como dos conceitos-chave em torno dos quais organizou sua progressão argumentativa. Vale destacar a menção à “necropolítica”, que figura, desde o título, como parte das estratégias da autora para assegurar um eixo textual ao longo de sua redação, rica em referências e detalhamentos. Cabe destacar que o vocabulário, antes notório por sua produtividade, deixa a desejar nesta finalização do texto, pois é percebida pouca versatilidade em substituições de termos por seus sinônimos, o que faz com que a autora repita algumas palavras e expressões. No mais, a redação analisada demonstra não apenas um uso autoral dos recursos da linguagem, como também o faz em benefício do aprofundamento na discussão sobre o tema.