Ele vendia trufas no farol e hoje estuda Medicina na USP
Lyncoln Reugys Santos Belo tem 23 anos e ingressou no curso de Medicina na Universidade de São Paulo (USP), no campus de Pinheiros, no começo de 2023. Lyncoln não tem pais ricos, não estudou nas melhores escolas, nunca imaginou que poderia ser doutor e é o primeiro de sua família a ingressar em uma universidade.
A história do rapaz é surpreendente. De baixa renda, nunca teve dinheiro para custear os estudos. Já foi barrado na catraca do cursinho por estar com as mensalidades atrasadas, dormiu três horas por noite para poder estudar de manhã e trabalhar à tarde, e chegou a vender trufas no farol ao lado da mãe. Sua história poderia ser só mais uma perdida na triste realidade da desigualdade social brasileira.
Felizmente não foi.
Uma vez que entendeu que queria ser médico, não parou até ver o seu nome na lista de aprovados da melhor universidade do país, depois de cinco anos de cursinho. A jornada até esse dia é o que GUIA DO ESTUDANTE conta neste texto. Esquente seu chá, se acomode e embarque nessa saga que começa lá na infância do futuro médico.
Lyncoln conta que, durante seus anos de preparação, lia histórias de aprovados como essa aqui no GUIA DO ESTUDANTE e que isso lhe inspirava a continuar. A gente espera que este texto possa fazer o mesmo por alguém.
Antes do jaleco, balé clássico e salão de beleza
A mãe de Lyncoln sempre lhe disse que ele tinha mãos de médico. Mas não foi isso que o levou a seguir essa carreira. Na verdade, a ideia de ser doutor nem passava pela cabeça do menino. Filho de pais e avós que não tiveram acesso aos estudos, cresceu imaginando que, assim como a maioria ao seu redor, seguiria alguma profissão que lhe rendesse o suficiente para pagar as contas.
Sua perspectiva começou a mudar quando, aos 10 anos, ele e a família – composta por Lyncoln, a mãe, o padrasto e dois irmãos mais novos – se mudaram para Mongaguá, no litoral de São Paulo (SP). Lá, o menino ingressou em um curso de balé clássico. As aulas, realizadas em uma academia pública perto de sua casa, funcionavam como terapia para o menino. Era onde ele se permitia sonhar e se expressar sem medo, e onde também passou a sonhar com uma carreira internacional como dançarino.
A alegria, porém, não durou muito. As condições financeiras da família não estavam nada bem. Já na adolescência, Lyncoln passou a trabalhar com a mãe na praia vendendo raspadinha, mas o dinheiro que entrava não era o suficiente. Aos 15, e prestes a começar o primeiro ano do Ensino Médio, a família se viu obrigada a voltar à capital paulista. De volta a São Paulo, não encontrou nenhuma academia pública que fosse perto de casa. Tendo que recomeçar a vida, iniciar o Ensino Médio em uma nova escola, e sem as aulas de balé – a sua terapia –, a saúde mental do jovem ia de mal a pior. Lyncoln passou a conviver com a depressão e a síndrome do pânico.
Assim, procurou outra atividade e encontrou: entrou em um curso de cabeleireiro. Saíam os collants e entravam as tesouras. Tocou o curso em paralelo ao longo de todo o Ensino Médio, apenas para perceber, aos 17 anos e depois de formado, que aquele trabalho não era para ele. “Eu tinha alergia ao produto que usava para fazer escova progressiva”, conta.
“Mãe, quero ser médico”
“Meu Deus, já passei pelo balé, pelo cabeleireiro… o que que eu vou fazer da vida?”, pensava Lyncoln. A sensação de estar perdido só aumentava no peito do rapaz. E, como desgraça pouca é besteira, uma tia próxima ficou doente. Um AVC seguido de uma meningite deixou a senhora internada em estado vegetativo por longos meses. A tia se recuperou e hoje está bem, mas foi durante as inúmeras visitas ao hospital que o menino começou a olhar para aquele ambiente com outros olhos. O contato com os médicos, os enfermeiros e a própria rotina hospitalar funcionou como a resposta que o jovem tanto procurava.
Com 17 anos e no segundo ano do Ensino Médio, enfim entendeu: “É isso que eu vou fazer, eu vou prestar medicina.”
Assumir que queria ser médico não foi uma tarefa fácil. Ninguém da família da Lyncoln havia estudado. A ideia de passar seis anos em uma faculdade era inédita para todos. “Todo mundo dava risada, falavam que seria impossível, porque eu era filho de pobre, filho de uma faxineira, sem um pai para ajudar”, conta. A única que lhe deu apoio foi a mãe, que devido a problemas de saúde, preciso deixar a faxina para se aposentar. A família vivia agora apenas com a renda do padrasto, um gesseiro autônomo.
Foi assim que Lyncoln resolveu ajudar a mãe vendendo trufas no farol – era a melhor alternativa para não atrapalhar os estudos. Os dois passaram a acordar cedo todos os dias para preparar os doces e vendê-los nos semáforos da cidade. A rotina se tornou ainda mais intensa quando Lyncoln chegou ao terceiro ano do Ensino Médio, e percebeu que, se ainda quisesse seguir o sonho de cursar Medicina, teria que começar a juntar dinheiro para pagar um cursinho. E foi o que fez. Estudando no período da noite, passou a vender trufas com ainda mais frequência: dos faróis à paróquia da igreja.
Na escola, os professores duvidavam dos esforços do rapaz. Um deles chegou a dizer: “você sabe que vai acabar virando feirante, não é?”. Naquele dia, o jovem voltou para a casa chorando, desolado, mas não se deixou levar pelas palavras do docente. Agarrou com ainda mais forças o sonho de virar doutor e decidiu: não só seria médico, como iria estudar na USP. Vendo a seriedade do filho, a mãe lhe disse que não precisava mais de ajuda com as trufas; queria que o rapaz se dedicasse totalmente aos estudos.
A maratona de cursinhos
Lyncoln se formou no Ensino Médio e, no início do ano seguinte, conseguiu uma bolsa parcial em um cursinho particular no bairro do Tatuapé. “Mas foi muito difícil”, conta o jovem. “Houve um momento em que a gente começou a passar fome dentro de casa, e a gente tinha que decidir se iria pagar o gás ou a mensalidade do cursinho”. Lyncoln chegou a ser barrado na catraca do curso por causa das mensalidades atrasadas.
Mesmo contra a vontade da mãe, Lyncoln acabou procurando um emprego. No começo do segundo de ano cursinho, passou a trabalhar em um centro de telemarketing. Com o salário, migrou para a turma da manhã – bem mais cara. Dos R$700 que recebia, R$500 ia direto para a mensalidade do curso; o resto gastava com condução. “Eu acordava às 4h da manhã, as aulas começavam às 7h10 e acabavam às 11h. Eu saía do curso, almoçava rapidinho e já entrava no trabalho às 14h, onde ficava até às 22h, voltava para a casa lá pela 00h”, relembra o estudante. Na Fuvest do fim daquele ano, ele conseguiu 47 pontos. A nota de corte para estudantes de escola pública, no entanto, era 69. Lyncoln precisaria de um terceiro de ano de cursinho.
No início do novo ano, se tornou monitor de cursinho: em troca de ajudar os professores, poderia estudar com uma bolsa integral. Os horários seguiam intensos. Acordava às 3h50 para chegar às 6h no curso, e só saia de lá 22h, chegando 00h em casa. Mais uma vez, o rapaz se via em uma rotina insalubre, mas agora totalmente focada aos estudos. A chegada da pandemia, ironicamente, ajudou o dia a dia do rapaz. Sem o deslocamento, passou a fazer a monitoria de casa, com um celular emprestado da tia, já que não possuía computador.
No fim do terceiro ano de cursinho, finalmente o estudante viu uma evolução significativa: acertou 62 questões na primeira fase da Fuvest, o suficiente para tomar fôlego para mais um ano de estudos. O quarto ano de cursinho foi um verdadeiro inferno. A rotina de dormir apenas três horas tinha um custo alto: chegava a pedir para os professores para assistir aula em pé, para não pegar no sono. Chegou a desmaiar na sala de aula.
No fim do ano, a loucura toda não foi suficiente: evoluiu apenas cinco pontos. Foi de 62 para 67 questões na Fuvest. No entanto, o desempenho no Enem foi surpreendente: sua nota naquele ano lhe rendeu uma aprovação na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e na Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP).
As aprovações eram o que faltava para renovar o fôlego do rapaz. Em casa, a família passou a entender que a chance estava cada vez mais próxima. Para os familiares que falavam que Lyncoln estava abusando da paciência os pais, foi como uma prova de que ele iria ter sucesso. E iria mesmo.
Enfim, a aprovação
Na virada do quarto ano de cursinho, no dia 31 de dezembro, o jovem resolveu ter um réveillon diferente. Longe das festas e dos fogos de artifício, foi sozinho até a entrada da Cidade Universitária, o campus da USP. Não pôde passar da catraca, mas ficou por ali mesmo. A mãe e o pai lhe chamaram de doido, mas Lyncoln estava exatamente onde queria estar. Na hora do “…3, 2, 1”, seu primeiro abraço de 2022 foi com o segurança noturno. Nos primeiros minutos do novo ano, desejou: “Senhor, você sabe que eu passei por muita coisa já, e sabe que eu não aguento mais. Deus, eu vou tentar meu quinto ano de cursinho, mas me ajuda passar aqui na [USP] Pinheiros.”
Naquele começo de ano, recebeu uma proposta do cursinho: por conta do seu ótimo desempenho e de suas aprovações, teria uma bolsa integral sem precisar ser monitor. O jovem ficou em êxtase e aceitou sem pensar duas vezes. Outro cursinho também lhe fez um convite. Aceitou as duas propostas e decidiu fazer tudo na modalidade online, assistindo às aulas que considerava melhor em cada plataforma. Sem mais acordar 3h50 da manhã e passar horas na condução, sua vida era outra. Acordava às 8h, assistia séries e filmes, passeava com a cachorra de estimação e passava tempo de qualidade com a família.
A leveza do ano mostrou resultado. Depois de quatro anos tentando, Lyncoln passou para a segunda fase da Fuvest. Acertou 78 questões.
Para o jovem que tinha dificuldades de acreditar em si mesmo, era um sinal que todo o seu esforço valeria a pena. “Na minha cabeça, eu pensava ‘eu nunca vou passar, eu não vou conseguir, eu sou muito burro’, e quando eu vi a quantidade de acertos, comecei a achar que conseguiria”, conta. Passou então as semanas entre a primeira e a segunda etapa com a cabeça mergulhada nos livros. E quando chegou o dia, deu o seu melhor.
O seu melhor, no entanto, não foi o suficiente. Na divulgação da primeira lista, não encontrou seu nome: Lyncoln não estava na chamada regular. Naquele momento, seu chão caiu e pensou em desistir de tudo. O clima na casa era de luto. O que Lyncoln não contava, mais uma vez, era com o seu desempenho no Enem (ele havia, inclusive, tirado 980 na redação!). Em 2022, a USP introduziu o seu próprio sistema de integração com a nota do exame, o Enem-USP. Sem mais usar o Sisu, a universidade divulgou a lista de aprovados por e-mail. Foi quando o jovem ouviu o que esperava há tantos anos.
Quem deu a notícia foi Miguel, um amigo. Lyncoln dormia e quem ficou sabendo primeiro foi a mãe. “Eu estava num sono profundo e acordei com a minha mãe e a minha cachorra pulando em cima na cama: ‘Lyncoln, Lyncoln, Lyncoln, seu amigo está falando que você passou!’, nisso meu celular não parava de apitar, eu comecei a ficar nervoso, meu coração acelerar, a vista foi ficando escura, peguei o telefone e falei com o Miguel: ‘Lyncoln, você passou!’”, lembra ele. “Foi inesquecível, eu voltaria cinco anos da minha vida só para sentir de novo o que eu senti naquele momento.”
A comemoração se estendeu para fora de casa e a rua parou para celebrar a aprovação de Lyncoln. O jovem havia passado ainda na Unicamp e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Quando a realidade começou a assentar, o recém-aprovado lembrou de seu professor que disse que ele seria feirante. “Se eu tivesse prestado atenção nele e em outras pessoas, eu nunca teria passado.”, disse.
Lyncoln, estudante de Medicina
Lyncoln agora está no segundo semestre do curso. Foi a sua primeira festa universitária e fez novas amizades. Faz parte também do time de natação. Ainda não se acostumou com a realidade de estudar na melhor universidade da América Latina. Conta que dias desses esbarrou com o médico e escritor Dráuzio Varella pelo campus. Por enquanto, acha que irá se especializar em endocrinologia ou ginecologia, mas também está se interessando pelo mundo das cirúrgias plásticas. Recentemente, deu início a sua iniciação científica. E agora, passa os fins de semana ajudando aqueles que um dia estiveram no seu lugar: é plantonista no MedEnsina, o cursinho popular do curso de Medicina da Universidade.