Redação do Enem: como os corretores analisam o repertório sociocultural
A prova de redação do Enem exige que o candidato desenvolva uma dissertação-argumentativa, apresentando uma tese na introdução e defendendo seus pontos de vista ao longo do texto. Para embasar os argumentos, é necessário que ele apresente um repertório sociocultural. Mas, afinal, o que isso significa na prática?
O Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), responsável pela prova, classifica repertório sociocultural como “toda e qualquer informação, fato, citação ou experiência vivida que, de alguma forma, contribui como argumento para a discussão proposta pelo participante”.
Portanto, o estudante pode usar para embasar seu argumento a frase dita por um filósofo, um conceito político, um filme ou até uma situação que ocorreu em um reality show, por exemplo. O que importa, em todos esses casos, é a referência realmente se aplicar ao tema que está sendo proposto e a forma como ela será articulada.
O que avalia a competência 2
O repertório sociocultural compõe a competência 2 avaliada pelos corretores. Ela mede a habilidade do candidato em “compreender a proposta de redação e aplicar conceitos de várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema, dentro dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo em prosa”.
Vale lembrar que os critérios de correção da redação do Enem seguem cinco competências. Em cada uma delas, o estudante pode atingir também cinco níveis de desempenho, que vão de 0 a 200 pontos. No caso da segunda competência, o repertório conta muito na atribuição da nota e por isso é importante entender como inseri-lo no texto.
Segundo o manual do Inep destinado aos corretores da redação do Enem, para que o candidato alcance a pontuação máxima, o repertório utilizado precisa ser legitimado, pertinente e ter uso produtivo.
Abaixo, entenda o que significa cada um destes critérios.
Repertório legitimado
A banca só considera o repertório legitimado se as informações, fatos, situações ou experiências vividas apresentadas pelo candidato tiverem respaldo nas áreas do conhecimento. Ou seja, se tiverem ligação com a ciência, a tecnologia e a cultura.
É por isso que ao citar um conceito que tenha a ver como o tema da proposta é necessário que o candidato apresente também suas definições no argumento. Quer um exemplo? Em uma redação sobre racismo, é possível mobilizar o conceito de necropolítica, explicando que ele diz respeito a como o Estado elege qual parcela da população deve viver ou morrer.
A partir dele, o candidato poderia explicar a estreita relação entre necropolítica e racismo estrutural, já que a parcela da população que mais morre por descaso governamental são pobres e negros. A falta de saneamento básico, por exemplo, atinge especialmente populações marginalizadas, que em sua maioria é negra.
Além de conceitos, serão considerados repertório informações, citações, fatos e/ou referências a áreas do conhecimento, tais como:
- fatos ou períodos históricos reconhecidos;
- referência a nomes de autores, filósofos, poetas, livros, obras, peças, filmes, esculturas, músicas etc.;
- referência a Áreas do Conhecimento e/ou seus profissionais, como Sociologia/sociólogos, Filosofia/filósofos, Literatura/escritores/poetas/autores, Educação/educadores, Medicina/médicos, Linguística/linguistas etc.;
- referência a estudos e/ou pesquisas;
- referência a personalidades, celebridades, figuras, personagens, desde que conhecidos;
- referência aos meios de comunicação conhecidos, como redes sociais, mídia e jornais.
Além de legitimado, o repertório é pertinente?
Segundo o manual do Inep, uma vez constatado que o repertório é legitimado, é preciso verificar também sua pertinência ao tema. Na prática, um repertório é considerado pertinente se fizer referência a pelo menos um dos elementos da frase tema. Vejamos um exemplo prático.
Portanto, na hora de incluir o repertório, era necessário que o candidato citasse algum desses elementos diretamente ou por meio de sinônimos, hiperônimos ou hipônimos.
“A referência não precisa ter uma relação imediata, mas o candidato precisa mostrar que entre o tema e a citação feita existe um vínculo de pertinência”, explica Marina Rocha, professora de redação do Colégio e Curso AZ.
Uma das redações que alcançaram a nota mil no Enem do ano passado argumentava que uma das consequências da falta de registro civil é a precarização do trabalho. A candidata Alice Souza Moreira destacou que pessoas sem registro civil também deixam de tirar a carteira de trabalho, inviabilizando a efetivação dos direitos laborais, como férias remuneradas, ou, em casos mais extremos, torna o indivíduo vulnerável a trabalhos análogos à escravidão.
Para legitimar esse argumento, a estudante usou a obra “Casa-grande e Senzala”, do autor Gilberto Freyre. Ela fez a leitura de como o ator “realiza uma comparação entre o Brasil hodierno e o Brasil Colônia, em que o trabalho escravo – ou seja, o ato laboral precarizado – é um instrumento de invisibilidade social”.
Veja a introdução e o primeiro parágrafo de desenvolvimento que traz o repertório
A Constituição Federal, promulgada em 1988, foi esboçada com o objetivo de delinear direitos básicos para todos os cidadãos. Entretanto, tal teoria não tem sido vista em metodologias práticas, uma vez que ainda há a falta do registro civil de milhares de pessoas, impedindo-as de garantir o acesso à cidadania no Brasil, o que gera a invisibilidade social. Tal invisibilidade provoca inúmeras chagas, como a precarização do trabalho e a exclusão democrática.
Diante desse cenário, é válido retomar o aspecto supracitado quanto à precarização do trabalho laboral. Nesse contexto, é indiscutível que a ausência do registro civil primordial – a certidão de nascimento – impossibilita a pessoa de possuir outros documentos necessários para a vivência social, como, por exemplo, a carteira de trabalho. Dessa forma, é afirmativo que tal lacuna incorre na precarização do trabalho, uma vez que inviabiliza a efetivação dos direitos laborais, como férias remuneradas, ou, em casos mais extremos, torna o indivíduo vulnerável a trabalhos análogos à escravidão. Em consonância com tal tese, é possível citar a obra “Casa-grande e Senzala”, do autor Gilberto Freyre, na qual ele realiza uma comparação entre o Brasil hodierno e o Brasil Colônia, em que o trabalho escravo – ou seja, o ato laboral precarizado – é um instrumento de invisibilidade social. Sendo assim, torna-se evidente a essencialidade dos registros civis na garantia dos direitos trabalhistas para todos os brasileiros, o que, por sua vez, coopera em promover a visibilidade cidadã.
Repertório de uso produtivo
O terceiro e último ponto que o aluno precisa avaliar na hora de escolher o repertório é em relação à produtividade dele. “Produtivo é aquilo que gera um efeito. Então, o aluno deve pensar: qual é o resultado da inserção deste argumento? É o momento de avaliar o impacto que o candidato quer causar com o repertório escolhido no texto”, observa Marina.
A professora ressalta que o uso de um repertório não se restringe apenas ao seu papel na argumentação, e que ele também pode ser usado para introduzir o tema. “O uso se torna produtivo tanto quando o aluno usa um repertório para contextualizar o tema na introdução como quando ele pega um filme para ilustrar uma situação sobre a qual ele vai discorrer no parágrafo de desenvolvimento”, explica.
É por tudo isso que podemos dizer que a redação da candidata nota mil Alice Souza Moreira, que citou Gilberto Freyre, é um exemplo de repertório ideal. Ele é legitimado, já que ela traz o pensamento de um sociólogo brasileiro, pertinente, porque a referência está ligada ao elemento da invisibilidade social, e produtivo, já que a citação realmente agrega ao argumento que está sendo defendido.