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Ele garantiu 980 na redação do Enem citando Gilberto Gil e Fafá de Belém

Lyncoln Reugys Santos Belo, 23 anos, é um ponto fora da curva. De origem simples, o estudante precisou de muita esforço e dedicação para conquistar uma vaga no curso de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Em entrevista ao GUIA DO ESTUDANTE, contou que durante os quatro anos de estudo para o vestibular passou por poucas e boas para pagar a mensalidade do cursinho – chegou a vender trufas no farol, trabalhar como atendente de telemarketing e dormir apenas 3 horas por noite. O esforço do rapaz trouxe resultados: além das aprovações, garantiu 980 na redação do Enem.

Somado ao seu excelente desempenho nas questões, a nota quase 1000 no texto garantiu ao jovem a tão sonhada aprovação na USP, por meio do sistema Enem-USP. O processo seletivo acontece de forma semelhante ao que era quando a universidade participava do Sisu, selecionando os alunos a partir do desempenho no Enem. Apesar de sua grande dedicação e preparo, Lyncoln, como muitos estudantes, sentia-se inseguro com a pressão dos vestibulares. “Na minha cabeça, eu pensava ‘eu nunca vou passar, eu não vou conseguir, eu sou muito burro’”, contou ao GUIA.

Em seu texto, o futuro médico trouxe uma verdadeira variedade de argumentos e referências. Sobre o tema “Os desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil”, iniciou a dissertação-argumentativa citando algumas características da sociedade de Esparta, na Grécia Antiga. Nos parágrafos de desenvolvimento referenciou a obra dos cantores Gilberto Gil e Fafá de Belém, além de citar a tragédia de Brumadinho.

Na vista pedagógica disponibilizada pelo Inep, Lyncoln mostra que a única das cinco competência que não gabaritou foi a primeira – ficando com 180 de 200 pontos. A Competência 1 avalia o domínio que o candidato tem da norma padrão da Língua Portuguesa.

Para analisar o texto do estudante, convidamos a professora de redação Cora Conte, do Poliedro Colégio Campinas. Ela falou a respeito das escolhas textuais do jovem em cada parágrafo do texto. Leia abaixo a redação na íntegra, e em seguida os comentários da professora.

Análise da redação

Introdução

Na antiga sociedade de Esparta, era comum que culturas distintas desta fossem desprezadas ou reprimidas. A partir disso, criou-se um consenso social por meio do qual somente povos dentro de um padrão espartano fossem legítimos e valorizados. Contemporaneamente, nos parâmetros da nação brasileira, essa questão ainda está presente: apesar de importantes, povos e comunidades tradicionais são vítimas da desvalorização e de desprezo externo. Isso, certamente, configura um desafio, cujas causas estão centradas tanto nos empreendimentos do mercado, quanto na baixa representatividade destinada a essas pessoas.

Comentário da professora:

Em uma redação modelo ENEM, apresentar repertório sociocultural é essencial para garantir uma boa avaliação na Competência II. Essa exigência é cumprida pelo texto logo na introdução, em que há um repertório sobre a sociedade de Esparta, informação legitimada por uma área do conhecimento, a História. Além de legitimado, o repertório é pertinente ao tema “Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil”, uma vez que o contexto histórico é mobilizado para estabelecer um paralelo com a sociedade brasileira ao demonstrar como ocorre, atualmente, a desvalorização de determinados povos, de modo similar ao que acontecia em Esparta. Destaca-se que esse repertório será novamente mencionado em outros parágrafos, o que evidencia sua pertinência para a discussão proposta pelo aluno e o planejamento de sua escrita. 

Outro destaque é a clareza do ponto de vista delimitado já no primeiro parágrafo, o que é importante em texto dissertativo-argumentativo. Nesse caso, de modo relacionado ao tema, o aluno assume uma tese e aponta duas causas da problemática: empreendimentos do mercado e baixa representatividade dos povos tradicionais. Essa delimitação organiza o projeto de texto e demonstra para o leitor qual caminho argumentativo será defendido no primeiro argumento (empreendimentos do mercado) e no segundo argumento (baixa representatividade dos povos tradicionais). 

Desenvolvimento 1

Primeiramente, é válido ressaltar algumas realizações do mercado como fatores que potencializam a supracitada discussão. Em uma sociedade marcada pelo protagonismo do lucro do setor primário, isto é, aquele a quem é atribuída a responsabilidade pelas exportações agrícola e mineral, é irrefutável que a lógica econômica ganha mais respaldo que a preservação das comunidades tradicionais. Por esse motivo, ao seguir esse raciocínio, o Brasil possui inúmeros casos em que a construção de rodovias e de barragens custa a vida e a conservação de moradores originários e ribeirinhos, como a recente destruição material e imaterial presenciadas por mineradoras, em Brumadinho. Assim, tem-se que a parcela tradicional é colocada em segundo plano, haja vista que suas moradias e os seus costumes são menos prezados em detrimento da razão econômica. Com isso, o empreendimento financeiro permeia uma das causas no que tange ao desafio em análise.

Comentário da professora:

No primeiro argumento, o texto sustenta o raciocínio anunciado na introdução, visto que desenvolve como a lógica do mercado, ao buscar o lucro, sobrepõe-se à preservação das comunidades tradicionais, ideia exemplificada com a menção à destruição ocorrida pelas mineradoras em Brumadinho. Assim, ainda que não apresente um repertório sociocultural legitimado, as informações são explicadas, bem articuladas e desenvolvidas sem lacunas, o que é importante para a avaliação na nota máxima da Competência III, na qual se avalia seleção, relação e organização das ideias bem como o projeto de texto. 

Desenvolvimento 2

Além disso, é cabível nortear a escassa representatividade dessas populações em torno dos espaços sociais. Embora a brasilidade das músicas de Gilberto Gil revele da diversidade cultural brasileira, ou os versos de canções como as de Fafá de Belém revigorem as pluralidades dos costumes e dos saberes tradicionais, vistos em sua música “Coração vermelho”, tamanha representação sócio-histórica, ainda assim, não é totalmente observada em outros constructos sociais. Em noticiários ou em situações que perpassam o cotidiano, por exemplo, quase não são vistos apresentadores televisivos de origem quilombola ou um porta-voz do ensino, em escolas, sendo atuado por indígenas. Dentre essas e outras pautas que exemplificam a sua baixa representatividade, o povo tradicional, então, ainda sofre do mesmo mal espartano.

Comentário da professora:

Em seguida, no terceiro parágrafo, há alusão a outro repertório sociocultural: as canções de Gilberto Gil e Fafá de Belém, personalidades da música brasileira, além da menção à música “Coração vermelho”. A referência a esses repertórios contribui para demonstrar uma contraposição entre tais obras culturais e a sociedade, pois diversidade brasileira presente nessas músicas não é notada outras esferas sociais em que não há representantes quilombolas ou indígenas, o que comprova os desafios para representatividade dos povos tradicionais. Um ponto interessante desse parágrafo é a retomada do repertório sociocultural sobre Esparta, referenciado na introdução da redação. Essa estratégia auxilia a fundamentação do argumento e, como já ressaltado, demonstra planejamento prévio do texto. 

Conclusão

À vista disso, portanto, medidas são necessárias para que se resolva o impasse. É preciso que o Ministério de Desenvolvimento Social (MDS) intermedeie através de uma lei que puna os setores do Mercado quanto às violações acerca desses povos. Isso pode ser feito por meio de parcerias com o setor legislativo e, especificamente, com propagandas televisivas que elucidem a importância das comunidades tradicionais, a fim de que estas sejam valorizadas. Assim, a essas empresas, devem-se cobrar multas que serão doadas a essas pessoas como garantia aos danos a elas cometidos. Além disso, o Estado deve criar leis de inclusão, em escolas e em televisões, obrigando-os a contratarem pessoas tradicionais, por meio de ações jurídicas, a fim de que o desprezo espartano não mais prossiga.

Comentário da professora

Para concluir uma redação modelo ENEM, é imprescindível a apresentação da proposta de intervenção completa com os cinco elementos exigidos pela banca de correção: agente, ação, modo/meio, finalidade e detalhamento. Nesta redação, tais elementos são apresentados, porém, destaca-se que, devido ao uso do gerúndio, poderia haver divergência na avaliação da banca. A seguir, há análise da proposta mais completa: “o Estado [AGENTE] deve criar leis de inclusão, em escolas e em televisões, [AÇÃO] obrigando-os a contratarem pessoas tradicionais, [DETALHAMENTO] por meio de ações jurídicas, [MODO/MEIO] a fim de que o desprezo espartano não mais prossiga [FINALIDADE].”. Novamente, percebe-se a estratégica relação com o repertório cultural, referenciado no início do texto. 

Em relação à modalidade escrita, houve penalização por um dos corretores da banca que atribuiu 160 na Competência I, devido ao desvio de concordância (“a recente destruição material e imaterial presenciadas por mineradoras”), quebra de paralelismo sintático (“haja vista que suas moradias e os seus costumes”) e desvio de regência (“revele da diversidade cultural brasileira”). Ressalta-se que, para nota máxima, a redação deve ter, no máximo, dois desvios de modalidade escrita. 

Por fim, vale destacar também o adequado e expressivo uso dos elementos coesivos para estabelecer articulação tanto entre os períodos quanto entre os parágrafos, como: “a partir disso”, “apesar de”, “tanto…quanto”, “assim”, “com isso”, “além disso”, “portanto” e outros conectivos. A presença diversificada desses elementos, sem repetições, garante a nota máxima na Competência IV, critério que avalia a coesão na redação. 

Guia do Estudante

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